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            ASSIM FALOU FRANK SINATRA

 

            Tom Jobim estava com amigos no bar Veloso, em Ipanema, quando o garçom lhe disse que havia um “gringo” no telefone querendo falar com ele. Dizem que, ao perguntar quem seria, e ao receber a informação de que era um tal de Frank Sinatra, Tom achou que estavam lhe passando um trote. Mas era verdade. Sinatra queria gravar um disco inteiro com Tom Jobim e, para fazer o convite, ligou para o seu bar preferido. Prestígio é isso!

            Frank Sinatra era uma unanimidade. Seria uma glória para qualquer compositor de música popular ter uma canção gravada por ele. Mas o projeto era bem maior. Tratava-se de um LP conceitual. Sinatra queria gravar com jeito brasileiro. Seriam seis músicas do Tom e mais seis do seu próprio repertório, mas arranjadas com levada de Bossa Nova, com Tom ao violão em todas as faixas fazendo a nossa batida característica. Todos os seus amigos ficaram eufóricos com a notícia, mas Tom Jobim, na sua habitual elegância, tratou do assunto com a maior simplicidade.

            Sinatra exigiu que Tom tocasse violão, embora o seu instrumento principal fosse o piano. Em troca, Tom pediu que o baterista fosse o brasileiro Doum Romão. Com tudo acertado, no começo do ano de 1967, Tom viaja para Los Angeles para gravar o LP “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”. Há uma foto emblemática sobre esse episódio na qual Tom aparece no aeroporto se dirigindo para o avião, de gravata, meio atrapalhado, com um paletó preto numa das mãos e seu violão Di Georgio Autor III na outra. 

            Nos registros com imagem das gravações do disco, vê-se claramente que Sinatra pede a Tom que lhe “ensine” o seu jeito de cantar. Sinatra abre mão dos agudos, cantando em tons mais baixos que os habituais, tentando igualar-se ao jeito minimalista dos intérpretes de Bossa Nova.

            O disco seria escolhido posteriormente o melhor daquele ano e só perdeu em vendas para o emblemático “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” dos Beatles. Mas, como o próprio Tom dizia brincando, “aí não vale, eles são quatro...”

            Anos depois, quando Frank Sinatra fez sua apresentação no Brasil para um Maracanã lotado, por conta da ausência de Tom naquela ocasião, apareceram rumores de que a relação entre os dois não ia lá muito bem. Mas, em 1984, numa das apresentações de Sinatra numa temporada no Carnegie Hall, Tom estava na platéia, discretamente, como sempre. No meio do show Sinatra pede que seja lançada uma luz no lugar onde Tom se encontrava, no meio do público, e anuncia: “Estou muito feliz com a presença na platéia do maior compositor do mundo: Antonio Carlos Jobim.”

            Assim falou Frank Sinatra, com quem, modestamente, concordo.

 

                                                                                                                                                    Eloi Vicente

 

 

 
            NOS BAILES DA VIDA 
 
            Há algumas (muitas) décadas, quando eu ainda era um garoto, havia bailes. Mais tarde, já mais grandinho (enquanto ainda havia os bailes) sobrevivi tocando para dançar. Naquela época eu tocava bateria. Por conta desse período em que ia dormir ainda ouvindo o zumbido provocado pelo som dos pratos, ganhei uma lesão auditiva que me diminuiu um pouco a percepção de ruídos metálicos pelo ouvido direito.
            Mas eu gostava muito de tocar nos bailes. Divertia-me vendo os casais pelos salões, as roupas, as “produções” das meninas e os “sem ritmo” tentando acertar o passo. Enfim, da minha posição privilegiada, eu acompanhava tudo o que acontecia.
            Naqueles tempos de baile se dançava colado. Li em algum lugar uma definição curiosa sobre a dança de salão: “A dança de salão é a representação em pé de uma intenção deitada”. E era interessante perceber, na hora da seqüência de músicas “mela-cueca”, que o “rapaz-tímido-de-terno-azul” acabou conquistando a “morena-gingada-de-vestido-e-olhos-verdes”.
            Mas, em algum momento, alguém teve a “idéia de gerico” de que os casais deveriam passar a dançar separados. E a dança, para os homens, se resumiu a ter que se balançar estranhamente na frente da garota, mantendo distância, e sem poder conversar, já que, além disso, a música (já sem músicos ao vivo) teve o seu volume elevado à estratosfera.
            Talvez essa condição de dançar separados, aliada à mudez imposta pelo “barulho musical”, tenha levado os jovens a inventarem o “ficar” como saída para tanta repressão. Afinal, ninguém é de ferro. Mas, de modo coerente com o modo de dançar, “ficam”, muitas vezes sem terem antes sequer trocado algumas palavras, sem ouvir a voz do outro, sem pressentir os cheiros, a textura da pele, da mão, a temperatura, num beijo quase burocrático e compulsório. Que pena...
            No conjunto de baile que toquei por mais tempo, “O Grupo”, quando o evento era em cidades próximas ao Rio, fazíamos a viagem em duas Kombis. Uma levava a aparelhagem e outra os músicos. Chegávamos ao local, fazíamos o baile e voltávamos quase sempre na madrugada, para não termos que gastar dinheiro com hospedagem. E era terrível. Na volta, como estávamos sempre muito cansados, aquele monte de homens, cochilando, numa Kombi cujos bancos tinham o encosto e o assento em perfeitos ângulos retos, lutava para não desabar em sono profundo, com a cabeça constrangedoramente apoiada no ombro do colega.
            Fazia parte do trato, por parte do contratante do baile, oferecer um lanche para os músicos no intervalo. E não tinha erro. Quanto mais pobre o lugar ou o clube, melhor era o lanche. Em alguns lugares bem humildes, nos serviam verdadeiros banquetes, enquanto em outros locais, mais “metidos a besta”, para os músicos, “pão com mortadela e guaraná”.
            Uma vez quase desmaiei de cansaço no meio do baile. Sem dormir direito, sem a alimentação adequada e extenuado de “sentar a mão” naquela bateria, fui parar num hospital. Algumas vezes também acabamos apanhando, inocentes, por conta de alguma briga no salão, que acabava sobrando para os músicos.
            Mas foi um tempo muito feliz. E hoje, quando encontro ou trabalho com músicos que também “ralaram na noite”, compartilhamos aquela “malandragem musical”, que só possuem os que tocaram nos “bailes da vida, ou num bar em troca de pão”. 

 

                                                                                                                                                Eloi Vicente

 

 

 
            HISTÓRIAS DE MÚSICOS
 
            Assim como os pescadores, músicos são sempre cheios de histórias. Algumas delas, mesmo sem a devida consistência no quesito veracidade, merecem ser contadas.
 
            Quando não existiam ainda as entidades arrecadadoras de direitos autorais no Brasil, muitos compositores populares só achavam um jeito de receber “algum” pelas suas composições: vendê-las. Cartola, no entanto, era um dos compositores que não gostava muito dessa prática. Preferia, na época das “vacas magras”, buscar o seu sustento em outras atividades, como pintor de paredes ou lavador de automóveis. 
            Um dia, participando de uma roda de samba onde cada um mostrava suas novas canções, um sujeito desconhecido pediu o violão e começou a cantar um samba. Cartola quase teve um ataque. O samba que o homem apresentava como seu havia sido feito há poucos dias por ele, Cartola, em parceria com o grande Nelson Cavaquinho. Furioso, foi procurar Nelson, querendo trucidar o seu companheiro por ter vendido o samba.
Ao ser encontrado, antes mesmo que Cartola pudesse expressar toda a sua raiva, Nelson foi logo se explicando: “Calma meu amigo! Fique tranqüilo! Eu vendi só a minha parte! O samba agora é seu e daquele moço!”
 
            Uma das nossas cantoras de muito sucesso, durante um período da sua carreira, se apresentava cantando descalça. Numa dessas apresentações, o baterista da banda que a acompanhava havia tomado umas cervejas a mais antes do show. Por conta disso, uma necessidade imperiosa de ir ao banheiro lhe apareceu bem no meio de uma seqüência longa de músicas. Não haveria um intervalo tão cedo, e a sua vontade era daquelas inegociáveis.
Como os bateristas geralmente são alojados no fundo do palco, com pouca iluminação e tocam com a bateria colocada à sua frente, sem alternativa, decidiu resolver o seu problema ali mesmo, sentado, e sem perder o ritmo.
            Talvez tivesse dado certo, se os palcos de teatro não tivessem, geralmente, uma ligeira inclinação do fundo para a boca. E a cantora, que estava a falar das águas dos rios e dos mares nas canções que interpretava, começou a pisar, descalça, em outro tipo de líquido.
            Embora alguns da platéia tivessem até aplaudido a cena, achando que se tratava de um efeito especial, o baterista hoje deve a sua vida aos seus companheiros, que o salvaram de ser assassinado no camarim, ao protegê-lo do ataque da “cantora louca dos pés molhados”.
 
            Badeco, ex-integrante de Os Cariocas me contou que foi convidado pelo seu amigo João Gilberto para assistir a uma gravação que o João faria num estúdio (que já não existe mais) num prédio da Av. Rio Branco. Chegaram lá no início da noite, tudo estava preparado a contento e João começou a gravar. Mas nada dava certo.
João não se sentia confortável, não gostava dos resultados ao ouvi-los e, principalmente, reclamava de um barulho, um ruído intermitente, que ninguém mais ouvia, só ele. Depois de várias tentativas sem sucesso, já na madrugada, resolveram desistir e transferir a gravação para o dia seguinte.
            Voltando para casa, num táxi, a dois quarteirões do estúdio, João e Badeco passaram diante de uma obra emergencial na rua, por causa de um cano de água rompido, onde era usada uma britadeira. E João então perguntou a Badeco: “Será que essa obra acaba até amanhã? Porque era este o barulho que eu ouvia, lá dentro do estúdio!”
 
            Elza Soares começou a sua vitoriosa carreira no famoso programa de calouros do Ary Barroso. Ary era temido pelos que iam ao seu programa pela sua sinceridade. Assim como elogiava um bom candidato, também era capaz de reduzi-lo a pó se não fosse do seu agrado.
            Depois da apresentação, onde Elza Soares mostrou todo o seu jeito diferente de cantar, fazendo seus característicos vocalizes roucos enquanto sambava dentro de um vestido apertado (como faz até hoje), Ary, surpreso, lhe perguntou: “De que planeta a senhora veio?” E ela, ainda sem saber se aquilo era um elogio ou uma esculhambação, respondeu sem pestanejar: “Do planeta fome!”
 
            Uma cantora, já veterana, tinha no seu repertório de show “Valsa de uma cidade”, de Ismael Netto e Antônio Maria. Como estava se apresentando em Curitiba, durante a interpretação dessa música, teve a idéia de homenagear aquela bela cidade.
            Na segunda parte da valsa, há o verso “Rio de Janeiro, gosto de você”, e ela resolveu substituir o nome da cidade enaltecida na letra. Além da inadequação do que é cantado nos versos, que falam, por exemplo, de “vento do mar no meu rosto”, havia ainda outro detalhe. É que “Rio de Janeiro” tem seis sílabas métricas e “Curitiba” tem só quatro.
            E a nossa cantora, para resolver o problema de métrica, decidiu esticar logo a primeira sílaba. Mandou um sonoro “Cu-u-u-ri-ti-ba gosto de você” nos ouvidos da platéia, atônita, e, certamente, não muito feliz com a, digamos, bem intencionada homenagem.
 
            Mas essa mesma cantora, em outra ocasião, para resolver um problema durante um show, teve uma idéia realmente brilhante.
Ela esqueceu um pedaço da letra da música que estava interpretando. Ao perceber que não iria lembrar-se a tempo, começou a mexer os lábios como se estivesse cantando, mas sem emitir som, enquanto, com um olhar de súplica para o técnico de áudio, mexia no fio do microfone, dando a entender que teria aparecido um defeito que “emudecia” o som da sua voz para a platéia.
            O tempo que o técnico ficou, sem êxito, mexendo nos botões da mesa de som tentando consertar o suposto problema, foi suficiente para que passasse a parte da música onde “deu branco”. E ela voltou a cantar normalmente, já no pedaço em que sabia a letra, como se o som tivesse voltado naquele instante, fazendo sinal de agradecimento para o técnico e mostrando que o microfone “agora sim” estava funcionando bem. Genial!
 
            É comum, quando vão fazer shows em outras cidades, os artistas fazerem propaganda do evento, comparecendo a programas de rádio e televisão.
            Esta foi comigo. O grupo “Os Cariocas” estava numa cidade do sul do país e, a convite dos contratantes do show da noite, comparecemos antes a um programa vespertino de televisão desses dirigidos às “donas de casa”, com receitas de bolo, horóscopo, tratamentos para os cabelos, etc.
            A apresentadora, ao vivo, depois de dizer para as câmaras, orgulhosa, que artistas de vários estados do Brasil já estiveram no seu programa, e estava muito feliz em entrevistar naquele dia um quarteto muito especial da nossa música, fez a seguinte pergunta para o grupo: “Os Cariocas, são de onde?” Pano rápido! 

 

                                                                                                                                                 Eloi Vicente

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